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25 de Abril de 2024

Escuta ambiental em escritório de advocacia durante o período noturno

Publicado por Lauro Chamma Correia
há 7 anos


A presente explanação traz a lume tema que, posto que já tenha merecido aparente pronunciamento do legislador constituinte brasileiro de 1988, deflagra acirrada cizânia no âmbito jurídico. Discute-se a possibilidade de se utilizar prova produzida por escuta ambiental em escritório de advocacia durante o período noturno. A investigação a que se procedeu na confecção deste singelo artigo enveredou-se por duas correntes principais e diametralmente opostas: a primeira, baseando-se na firme exegese da Carta Magna, aduz que a inviolabilidade domiciliar, durante a noite, pode tão somente ser excepcionada pelos casos previstos em seu texto, quais sejam, para prestar socorro ou nos casos de flagrante delito, ao mesmo tempo em que se propugna pelo respeito à confidencialidade dos dados depositados na pessoa do advogado, não abarcando o caso em debate; a segunda corrente, por sua vez, admite certa flexibilidade quanto à produção de prova no recinto em tela ao longo do período noturno, assim como mitiga o sigilo que alberga os dados colhidos no exercício da referida profissão, face às circunstâncias de um caso concreto.

Introdução

Poucos são os temas da seara jurídica que causam tanto fascínio e, nas mesmas proporções, acirrada dissidência entre seus debatedores quanto o concernente à licitude dos meios de prova.

A expressão “prova”, a despeito de comportar nítida polissemia, faz parte do momento do processo rigidamente vinculado à alegação dos fatos, com o propósito de possibilitar a demonstração da “verdade” em juízo, revestindo-se, portanto, de fundamental importância ao regular andamento processual.

Assim como qualquer direito plasmado na Constituição Federal, o direito à prova não é absoluto, encontrando limites nos valores ditados por nosso Estado Democrático de Direito. Deverá ele coexistir harmonicamente com outros direitos e garantias, de tal forma que a ordem pública e os direitos e garantias individuais não sejam postos em risco.

Nada obstante, muitas vezes tais limites não se encontram bem delineados em nosso ordenamento, de modo que muitos comportamentos enquadram-se em uma zona cinzenta, da qual não é tarefa das mais fáceis se extrair sua (i) licitude.

Uma das peculiares situações passíveis de adentrar neste campo jurídico de incertezas é justamente o título do presente artigo, o qual, por retratar conjuntura bastante específica, permite um estudo analítico e indutivo dos elementos que o compõem.

O estudo da escuta ambiental, como meio de obtenção de prova, advém da necessidade de se comentar sua grande aplicabilidade e utilidade em tempos hodiernos, mormente contra os chamados crimes organizados, a despeito de ainda carecer de mínima disposição normativa que a regulamente, como ocorre com as interceptações telefônicas, por meio da Lei º 9.296/96, complementando a eficácia do inciso XII do artigo da Constituição Federal.

Ademais, a utilização de escutas no caso em comento torna-se um procedimento invasivo, pois, no escopo de assegurar sua eficácia, deve violar o âmbito profissional de um escritório de advocacia.

São estes, em linhas gerais, os pontos controvertidos a serem analisados por este singelo escrito, preordenado a contribuir para o fomento de um debate que, pela especificidade do tema, é ainda incipiente, seja na seara acadêmica, seja na doutrinária e, principalmente, no meio pretoriano, a despeito de neste já haver decisões que tenham enfrentado, diretamente, a matéria aqui tocada, consoante adiante se explicitará.

1 Escuta ambiental e sua distinção da interceptação telefônica

A escuta ambiental pode ser entendida como uma captação sub-reptícia de um diálogo realizado entre interlocutores sujeitos a diligências investigatórias, por meio de aparelhos específicos inseridos no ambiente em que se passa a conversa. Conforme George Marmesltein:

A interceptação ambiental segue a mesma lógica da interceptação telefônica, ou seja, precisa de ordem judicial “circunstanciada” para ser válida. E, no fundo, a interceptação ambiental é essencialmente semelhante à interceptação telefônica: há uma gravação de conversa (no caso, sem telefone) na qual nenhum dos interlocutores sabe que o diálogo está sendo ouvido e gravado por estranhos. Por isso, a lei exige a autorização judicial no intuito de evitar a invasão indevida na esfera de intimidade dos indivíduos.[1]

Não raro há certa confusão quanto à identificação conceitual entre interceptação telefônica e escuta ambiental, precisamente porque existem inúmeros sinônimos para ambas. Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho elencam as possíveis modalidades de captação sonora a serem utilizadas como meio de prova:

“a) a interceptação da conversa telefônica por terceiro, sem o conhecimento dos dois interlocutores; b) a interceptação da conversa telefônica por terceiro, com o conhecimento de um dos interlocutores; c) a interceptação da conversa entre presentes, por terceiro, sem o consentimento de nenhum dos interlocutores; d) a interceptação da conversa entre presentes por terceiro, com o conhecimento de um ou alguns dos interlocutores; e) a gravação clandestina da conversa pessoal e direta, entre presentes, por um dos interlocutores, sem o conhecimento do (s) outro (s).”[2]

Necessário esclarecer que qualquer interceptação pressupõe, no mínimo, três personagens: dois interlocutores e o interceptador, o qual captura o diálogo sem o consentimento de ambos, ou, até mesmo, com o consentimento de um.

Caso a interceptação utilize como meio a conexão de um dispositivo a um circuito que carrega informações entre telefones, estar-se-á diante do conhecido “grampo” telefônico, o qual pode ser perfeitamente realizado sem acarretar qualquer inviolabilidade domiciliar, utilizando-se tão somente de uma linha externa, ou seja, sem a necessidade de instalação de qualquer apetrecho diretamente no aparelho.

Porém, quando a interceptação implicar captação sonora não telefônica entre os interlocutores, capturando os sons do ambiente por meio de aparelhos próprios instalados no recinto, será classificada como uma interceptação ambiental (“escuta ambiental” ou “captação ambiental”).

Não se pode olvidar de uma classificação utilizada pela doutrina para diferenciar “escuta”, “interceptação” e “gravação”. Quando a captação da conversa pelo interceptador é de conhecimento de um dos interlocutores, fala-se em “escuta”. Em contrário, quando a captura sonora é empreendida à revelia dos sujeitos, há a denominada “interceptação”. Por fim, há “gravação telefônica” quando esta é realizada diretamente por um dos interlocutores, sem o conhecimento do outro. [3] Logo, nesta última situação, interceptador e interlocutor se confundem na mesma pessoa. Segue o entendimento professado por Denilson Feitoza:

A expressão comunicações ambientais se refere às comunicações realizadas diretamente no meio ambiente, sem transmissão e recepção por meios físicos artificiais, como fios elétricos, cabos óticos etc.

Cunhamos a expressão comunicações ambientais por generalização de expressões como interceptação ambiental e gravação ambiental, atualmente utilizadas crescentemente para se referirem à captação de conversas orais audíveis realizadas diretamente entre pessoas humanas.”[4]

Em verdade, o ponto relevante para o estudo deste escrito deve se centrar não no suposto conhecimento da gravação por parte dos interlocutores, mas na necessidade ou não de se adentrar no escritório de advocacia para se efetivar o meio de obtenção de prova.

É que, consoante já explanado, a interceptação telefônica pode ser realizada sem transbordar os limites domiciliares do escritório. Logo, sua efetivação não violaria a proteção domiciliar albergada pelo inciso XI do artigo da Constituição, a despeito de, obviamente, mitigar outras normas constitucionais, referentes à vida privada, sigilo das comunicações telefônicas etc.

Em sentido diametralmente oposto, a escuta ambiental, obrigatoriamente, deve ser instalada no próprio recinto objeto das investigações, traduzindo procedimento invasivo em um ambiente profissional, igualmente protegido pela Carta Magna, cujo escopo se cinge à captação de diálogos considerados indispensáveis a uma maior efetividade investigatória.

2 Inviolabilidade domiciliar profissional durante o período noturno

Dispõe o inciso XI do artigo da Constituição Federal que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.”

O dispositivo supracitado alberga a inviolabilidade do domicílio como direito fundamental, cujas raízes históricas remontam às tradições inglesas, consoante verificado no discurso de “Lord Chatam” no Parlamento, o qual entoava que o homem mais pobre desafia em sua casa toda a pujança da Coroa, a despeito de sua choupana ser das mais frágeis e de seu teto ser dos mais trêmulos.[5]

Entende-se por domicílio a residência estabelecida com ânimo definitivo, resultado da conjugação de duas ideias, uma de ordem material ou objetiva (residência), e outra de ordem psíquica ou subjetiva (ânimo definitivo).[6]

Mais especificamente, a definição de domicílio profissional é encontrada no Código Civil, em seu art. 72, no qual se estabelece que “É também domicílio da pessoa natural, quanto às relações concernentes à profissão, o lugar onde esta é exercida.”

Consoante decidido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.127/DF, “a inviolabilidade do escritório ou do local de trabalho é consectário da inviolabilidade assegurada ao advogado no exercício profissional”.

Nada obstante, apesar de a exegese constitucional proteger, com mais rigor, a inviolabilidade do ambiente domiciliar durante o período noturno, tirante as hipóteses de flagrante delito ou prestação de socorro, imperioso aferir quais são os marcos delimitadores de tal interregno, a fim de se mensurar os limites temporais desta maior proteção concedida.

Primeiramente, há a corrente que aponta o critério objetivo como o mais adequado a separar “dia” e “noite”, estabelecendo um horário fixo para início e fim dos períodos, sendo, geralmente, entre 06hs:00min (seis horas) e 18hs:00min (dezoito horas)[7].

De fato, a adoção de um padrão objetivo garante maior segurança na aferição do período, de modo que não se perquiriria a observância de qualquer critério climático. Nesse sentido assim se expressa Dirley da Cunha Júnior:

Para definição do que seja durante o dia, em relação à qual paira divergência, cremos que o melhor critério não é o físico-astronômico (entre a aurora e o crepúsculo), mas sim, em razão de sua objetividade e segurança, o que indica o horário, que vai das 6 às 18 horas. Assim, cumprir mandado judicial de busca domiciliar fora desses limites (6 às 18 h) é medida que viola a proteção em tela, salvo se a diligência começou dentro do horário e, em face de sua complexidade e necessidade, se estendeu para além dele, o que é permitido.[8]

Porém, não se pode olvidar que, a despeito da objetividade do critério supracitado, este é alvo de críticas daqueles doutrinadores que levam em consideração um segundo critério, qual seja, o critério “físico-astronômico”, tendo como marco não horários pré-fixados, mas o interregno situado entre a aurora (claridade advinda do nascer do Sol) e o crepúsculo (ocaso).

A distinção prática da aplicabilidade dos dois critérios é visível principalmente em nosso país, de dimensões continentais, em que muitos lugares de seus extremos longitudinais o pôr-do-sol ocorre bem após as dezoito horas. Comunga deste mesmo entendimento Marcelo Novelino, ao professar que o critério físico-astronômico é o que mais se afina com um vasto território:

Em virtude das dimensões continentais do território brasileiro, o nascer e o pôr-do-sol ocorrem em horários diversos nas várias regiões do país, razão pela qual o critério físico-astronômico parece o mais apropriado. De acordo com esse critério considera-se dia o período compreendido entre a aurora e o crepúsculo.[9]

Por fim, há a acepção capitaneada por Alexandre De Moraes, na qual se combinam os dois critérios (objetivo e físico-astronômico), no escopo de melhor proteger o recinto domiciliar:

Entendemos que a aplicação conjunta de ambos os critérios alcança a finalidade constitucional de maior proteção ao domicílio durante a noite, resguardando-se a possibilidade de invasão domiciliar com autorização judicial, mesmo após as 18:00 horas, desde que, ainda, não seja noite (por exemplo: horário de verão).

Esse critério misto compatibiliza-se com a ratio constitucional, no sentido de proteção da casa durante o período noturno, possibilitando um descanso seguro a seus moradores, bem como diminuindo a possibilidade de arbitrariedades que estariam melhor acobertadas pelo manto da escuridão.[10]

Entende-se que assiste razão a este último critério, porquanto a aplicação isolada das duas primeiras correntes pode implicar, devido à amplitude do território brasileiro, excessivas distorções causadas pela variabilidade do que se considera período noturno.

Tenha-se, como exemplo, um local que tão somente anoitece às 20hs:30min. Diante de tal conjuntura, inviável a aplicação de um critério objetivo unificado, visto que o anoitecer na maioria do território geralmente ocorre por volta das 18 hs:00min.

Igualmente, não se mostra razoável a aplicação pura e simples do método físico-astronômico, pois o preciso momento sofreria intensa variação a depender da região na qual o domicílio está localizado, sem contar a intensa carga subjetiva para se aferir o exato momento de transição entre “dia” e “noite”.

A conjugação dos dois critérios (horário pré-fixado e crepúsculo) garante mais segurança jurídica às decisões judiciais que autorizam a invasão domiciliar, protegendo-a contra alegações de nulidade eventualmente suscitadas.

Há de se enfatizar que a autorização judicial, consoante dispõe o inciso constitucional, permite tão somente a inserção domiciliar durante o dia, não podendo convalidar qualquer entrada sem o consentimento do morador ao longo do período noturno.

3. Prova produzida por escuta ambiental em escritório de advocacia durante o período noturno

De pronto, cumpre esclarecer que não se pode responder satisfatoriamente se a prova produzida em referida circunstância é ou não admissível na instrução processual se não ocorrer um estudo de duas vertentes que indicam resultados diametralmente opostos. Tão só por meio da análise de cada uma dessas fundamentações pode-se almejar uma resposta satisfatória.

3.1 Argumentos favoráveis à sua admissibilidade

Um dos argumentos favoráveis à admissibilidade da invasão domiciliar (e não só de escritórios de advocacia) durante o período noturno é justamente a impossibilidade de se realizar certas diligências em plena luz do dia, sob pena de completo malogro, haja vista que o resultado prático não seria alcançado durante o período diurno.

Outro argumento de considerável pujança aponta no sentido de que a inviolabilidade domiciliar, caso não pudesse, em determinadas ocasiões, ser reconsiderada durante o período noturno, tornaria o reduto propício à prática de crimes, eis que imune a qualquer tentativa de averiguação por parte do Estado.

Traz-se o exemplo colhido por George Marmelstein em tal sentido, referendando o entendimento de que certas diligências hão de ser realizadas, necessariamente, à noite, a fim de que possam alcançar o resultado prático esperado, evitando-se que a proteção domiciliar sagre-se absoluta:

Vale ilustrar com um exemplo: imagine que existe suspeita de que uma determinada casa noturna, aberta apenas para convidados, está explorando sexualmente pessoas menores de idade. A suspeita não é forte o suficiente para configurar o flagrante-delito, hipótese em que seria desnecessária a autorização judicial. A boate em questão não é aberta ao público, já que apenas convidados podem entrar. Em situações assim, há inegável necessidade de ordem judicial para confirmar ou não a suspeita, mas a diligência será completamente inútil se for cumprida durante o dia. Por isso, certamente, o juiz, desde que o faça fundamentadamente, pode autorizar o cumprimento do mandado mesmo à noite para que a medida alcance algum resultado prático. Não fosse assim, estaria aberta uma imunidade quase intransponível para a prática ou ocultação de crimes no interior de residências.[11]

O próprio Supremo Tribunal Federal, no Inquérito 2424/RJ, teve a oportunidade de analisar especificamente o tema ora objeto de estudo, considerando lícitos os elementos probatórios obtidos por meio da escuta ambiental instalada em escritório de advocacia.

Asseverou-se em decisão que a constitucional garantia da inviolabilidade dos escritórios de advocacia, bem como de todas as oficinas domiciliares onde se trabalha reservadamente, não se mostra intransponível, devendo ser flexibilizada, assim como são todos os direitos, face a elementos contingenciais autorizantes, tal qual a impossibilidade de instalação, pela Polícia Federal, das escutas ambientais durante o dia, quando os agentes quedar-se-iam facilmente identificados.

Um dos argumentos que corroboram a licitude da escuta realizada em tais condições, seria o de que os limites da busca domiciliar deveriam ser alijados perante o caráter excepcional da medida.

É que tal diligência jamais poderia ser perpetrada com qualquer resquício de publicidade, sob pena de deflagrar sua frustração, o que muito provavelmente ocorreria caso fosse praticada durante o dia, mediante apresentação de mandado judicial.

Outro fundamento utilizado pelo STF ao analisar a situação em referência foi o de que a inviolabilidade domiciliar teria graus diversos de proteção, não podendo ser equiparado um vazio escritório de advocacia a um domicílio “stricto sensu”, o qual pressupõe a presença de pessoas que o habitem.

Ademais, ressaltou-se que o artigo , inciso II, da Lei 8.906/94 (Estatuto da OAB), o qual expressamente assegura ao advogado a inviolabilidade do seu escritório e de seus arquivos e dados, cederia quando o próprio causídico fosse suspeito da prática de crime no âmbito do seu escritório, utilizando-se do exercício de sua profissão como subterfúgio.

Destarte, o sigilo do advogado não poderia servir de escudo para proteção do advogado quando do cometimento de delitos, não sendo admissível que a inviolabilidade domiciliar transforme o escritório em um reduto de criminalidade impenetrável.

3.2 Argumentos contrários à sua admissibilidade

Expostos os argumentos favoráveis à admissibilidade da prova produzida nas condições ora em referência, necessário agora mostrar os fundamentos que embasam posicionamento diametralmente oposto, qual seja, o de que a escuta ambiental introduzida no escritório de advocacia à noite viola frontalmente o inciso XI do artigo da Constituição Federal.

O Ministro Celso De Mello, ao analisar o Inquérito supracitado, assim vota:

(...) o que se mostra inconstitucional, no caso, é a execução, pela Polícia Federal, da diligência probatória de que resultou a instalação, no escritório de Advocacia do denunciado, de aparelhos de escuta ambiental. A Polícia Federal não podia, ainda que munida de autorização judicial dada por esta Suprema Corte, ingressar, durante a noite, em espaço privado protegido pela cláusula constitucional da inviolabilidade domiciliar (um escritório de Advocacia), pois a Constituição, tratando-se de determinação judicial, somente permite o seu cumprimento “durante o dia”, como resulta claro, inequívoco, do que se acha previsto na parte final do inciso XI do art. 5º de nossa Lei Fundamental. Não obstante essencial a existência de ordem emanada de autoridade competente do Poder Judiciário, para efeito de legítima incursão de agentes estatais em espaço privado abrangido pela noção tutelar de “casa”, mostra-se importante advertir que a eficácia do mandado judicial restringe-se, unicamente, no plano temporal, às diligências que devem ser executadas “durante o dia” (CF, art. , XI, “in fine”), de tal modo que se reputará inconstitucional a execução, durante a noite, de qualquer determinação judicial, ainda que resultante de decisão proferida por esta Suprema Corte.

(...) o Estado, em tema de investigação policial ou de persecução penal, está sujeito à observância de um complexo de direitos e prerrogativas que assistem, constitucionalmente, aos cidadãos em geral. Na realidade, os poderes do Estado encontram, nos direitos e garantias individuais, limites intransponíveis, cujo desrespeito pode caracterizar inadmissível ilícito constitucional. A circunstância de a polícia judiciária achar-se investida de poderes que lhe permitem investigar eventuais práticas delituosas não a exonera do dever de observar, para efeito do correto desempenho de tais prerrogativas, os limites impostos pela Constituição e pelas leis da República, sob pena de esses órgãos incidirem em frontal desrespeito às garantias constitucionalmente asseguradas aos cidadãos em geral. Tenho para mim, presente o contexto em causa, que os agentes policiais transgrediram a garantia individual pertinente à inviolabilidade domiciliar, tal como instituída e assegurada pelo inciso XI do art. da Carta Política, que representa expressiva limitação constitucional ao poder do Estado, oponível, por isso mesmo, aos próprios órgãos incumbidos da persecução penal. Sabemos todos — e é sempre oportuno e necessário que esta Suprema Corte repita tal lição — que a cláusula constitucional da inviolabilidade domiciliar (CF, art. , XI) revela-se apta a amparar, também, qualquer “compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade” (CP, art. 150, § 4º, III).

Humberto Ávila, ao conceituar diretrizes para a análise dos princípios constitucionais, professa que a leitura da Constituição deve ser norteada pela concatenação de seus dispositivos com os princípios fundamentais que lhe dão esteio[12] (no caso em comento, com o princípio constitucional da vedação de provas ilícitas).

A Carta de Outubro ressalva que a inviolabilidade domiciliar pode ser relativizada durante o período noturno tão somente nos casos de flagrante delito e de prestação de socorro, ao mesmo tempo em que resguarda a entrada forçada no recinto, em qualquer outra hipótese, apenas durante o dia, ainda que por autorização judicial.

Logo, a expressão “durante o dia” não pode ser relegada, especialmente quando esta delimita um direito fundamental do cidadão em face do próprio Estado, valendo-se da premissa de que as disposições devem ser interpretadas de modo que não pareça haver palavras supérfluas e sem força operativa. Conforme o professor Raimundo Bezerra Falcão:

De fato, o princípio tradicionalmente conhecido é de que, na lei, inexistem palavras inúteis. Todas ali estão, como de resto, na linguagem em geral, para servir de objeto à produção de sentido. Não é propriamente que a palavra tenha, em si e por si, força operativa. Nesse ponto, o brocardo incorre numa impropriedade merecedora de ajustes, porque o sentido é operado no objeto por causa do espírito do sujeito. Mas o certo é que as palavras estão postas no texto como uma provocação ao sujeito interpretante, para que ele extraia delas os sentidos que estão aptas a propiciar que esse mesmo intérprete capte. Não se encontram ali por mero enfado ou capricho, mas para servir ao sentido, que tem no espírito do intérprete sua usina e complemento de produção.[13]

Analisando-se excerto bastante didático do Informativo nº 584 do Supremo Tribunal Federal, vê-se que o argumento utilizado em defesa da corrente anterior, qual seja, o da impossibilidade de instalação da escuta ambiental em plena luz do dia, sob pena de completo fracasso do resultado prático da medida, é rebatido com a proposta de outras possibilidades para o momento da instalação, no escopo de não violar o dispositivo constitucional sob análise:

(...) os organismos policiais podem executar, sem qualquer transgressão a direitos e garantias fundamentais, a ordem judicial destinada a introduzir, em determinado espaço privado amparado pela garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar, aparelhos de escuta ambiental, fazendo-o, por exemplo, sempre durante o dia, em períodos em que o escritório profissional esteja fechado, como aos sábados ou domingos. Esse, contudo, é um problema meramente operacional, mas que, se enfrentado de maneira adequada, evitará a prática inaceitável de desrespeito, pelos agentes estatais, a uma garantia constitucional tão cara à liberdade das pessoas. É preciso respeitar os direitos e prerrogativas que a Constituição da República estabelece em favor de qualquer pessoa sob persecução penal. A execução de ordens judiciais não pode transgredir o regime das liberdades públicas, sob pena de gravíssima ofensa à autoridade suprema da Constituição de nosso País. Note-se, portanto, seja com apoio no magistério jurisprudencial desta Suprema Corte, seja com fundamento nas lições da doutrina, que a transgressão, pelo Poder Público, das restrições e das garantias constitucionalmente estabelecidas em favor dos cidadãos — inclusive daqueles a quem se atribuiu suposta prática delituosa — culminará por gerar gravíssima conseqüência, consistente no reconhecimento da ilicitude da prova eventualmente obtida no curso das diligências estatais. Isso, uma vez ocorrido, provocará, como direta conseqüência desse gesto de infidelidade às limitações impostas pela Lei Fundamental, a própria inadmissibilidade processual dos elementos probatórios assim coligidos.[14]

Portanto, a utilização de meios de prova outros, tais quais interceptação telefônica, busca e apreensão, ou até mesmo a instalação de escutas durante o dia aos fins de semana, podem ser consideradas como alternativas viáveis à obtenção dos subsídios desejados ao longo das diligências investigativas.

Conclusão

A caracterização de uma prova como ilícita, não raro, inclui-se entre os caminhos mais árduos da ciência processual, em virtude da ponderação dos valores eventualmente em conflito.

A escuta ambiental, como meio de obtenção de prova, mostra-se de extrema eficácia nos procedimentos investigatórios utilizados pela máquina estatal, mostrando-se mais efetiva, de regra, do que as interceptações telefônicas ou buscas e apreensões realizadas nos escritórios de advocacia.

Por sua vez, referidos escritórios, porquanto caracterizados como domicílios profissionais, estão albergados pelo manto protetor da inviolabilidade domiciliar durante o período noturno, garantida pelo inciso XI, art. , da Constituição Federal, mesmo diante de autorização judicial.

Ademais, os advogados, indispensáveis na escorreita administração da justiça, igualmente são dotados da garantia de inviolabilidade dos atos e manifestações proferidas no exercício de sua profissão. Tal inviolabilidade, nada obstante, não é inquebrantável, não podendo ser o conjunto de garantias indevidamente utilizado, a servir como escudo ou manto protetor para a prática de crimes.

Uma vertente argumentativa, capitaneada pelo Supremo Tribunal Federal, encampa o entendimento de que os elementos probatórios produzidos em tais circunstâncias são lícitos e, consequentemente, devem ser admitidos, seja pela impossibilidade da operacionalização de tal proceder em plena luz do dia, seja pelo caráter relativo dos direitos fundamentais.

Ocorre que o Estado, na função de fiscalizador da sociedade, deve-se pautar por um ordenamento banhado pelos valores advindos da Norma Fundamental. Todos os dispositivos nela contidos devem ser interpretados de modo que os direitos e garantias individuais sejam levados à máxima efetividade, para que resistam às arbitrariedades perpetradas.

Ao se permitir a inserção, em escritórios de advocacia, de ditos aparelhos de forma sorrateira, ao longo do período noturno, estar-se-ia violando frontalmente explícita regra constitucional.

Ademais, outras vias de obtenção de prova, mediante circunstanciada autorização judicial, poderiam ser utilizadas para fazer as vezes da inserção noturna dos aparelhos de captação ambiental, tais como: a realização de interceptação telefônica (a qual não necessita da invasão domiciliar para ser efetivada); busca e apreensão de documentos; inserção diurna das respectivas escutas ambientais nos escritórios durante os fins de semana (período em que a movimentação no ambiente profissional mostra-se menos intensa ou até mesmo inexistente), entre outras.

Assim, percebe-se que a instalação de aparelhos de escuta ambiental não é imprescindível para uma efetiva instrução probatória, principalmente quando referida instalação vai de encontro ao explicitamente lapidado em mandamento constitucional.

Não pode a máquina estatal, portanto, valer-se de todo e qualquer meio na busca de uma “verdade”, mesmo tendo como força motriz para tanto um interesse público subjacente, qual seja, o de reprimir condutas ilícitas. Logo, deve o Estado brasileiro pautar-se por um cabedal de normas (regras e princípios) que traceje um limite a seu afã persecutório, estando este presente na Constituição Federal de 1988, documento imbuído de valores que erigem a dignidade da pessoa humana a um patamar superior, evitando-se, assim, um regresso a um extremismo próprio de Estados totalitários.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 7.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 3ª ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2009.

FALCÃO, Raimundo Bezerra Falcão. Hermenêutica. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997.

FEITOZA, Denilson. Direito processual: teoria, crítica e práxis. 6. ed., Niterói: Impetus, 2009.

FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; GRINOVER, Ada Pellegrini. Nulidades no Processo Penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, 6ª ed., 1997.

MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. ed. Atlas: São Paulo, 2008.

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002.

NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Editora Método, 2008.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil – Introdução ao direito civil. Teoria geral de direito civil. 20ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. vol. 1.

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30ª ed. São Paulo-SP Malheiros Editores, 2008.

NOTAS:

[1]MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. ed. Atlas: São Paulo, 2009, p. 131 e 132.

[2]FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; GRINOVER, Ada Pellegrini Nulidades no Processo Penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, 6ª ed., 1997, p. 175.

[3]GRECO FILHO, Vicente. Interceptação Telefônica (Considerações sobre a Lei 9.296 de 24 de julho de 1996). São Paulo: Saraiva. 1996, p. 5.

[4] FEITOZA, Denilson. Direito processual: teoria, crítica e práxis. 6. ed., Niterói: Impetus, 2009, p. 794.

[5] MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002, p. 236.

[6] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, vol. 1– Introdução ao direito civil. Teoria geral de direito civil. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 370.

[7] SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo-SP Malheiros Editores, 30ª edição, 2008, p. 437.

[8] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional., Salvador: Editora Juspodivm, 3ª ed, 2009, p. 684.

[9] NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. São Paulo: Editora Método, 2ª ed., 2008, p. 289.

[10]MORAES, Alexandre de. Constituição Do Brasil Interpretada e Legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002, p. 239.

[11] MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. ed. Atlas: São Paulo, 2008, pág. 133.

[12] “Bem concretamente, isso significa (a) ler a constituição federal, com atenção específica aos dispositivos relacionados ao princípio objeto de análise; (b) relacionar os dispositivos em função dos princípios fundamentais; (c) tentar diminuir a vagueza dos fins por meio da análise das normas constitucionais que possam, de forma direta ou indireta, restringir o âmbito de aplicação do princípio.” ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 7.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 92.

[13] FALCÃO, Raimundo Bezerra Falcão. Hermenêutica. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 265.

[14] Disponível em <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo584.htm> Acesso em 22 de julho de 2017.




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